Capítulo 01
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Eu vivia uma vida que parecia não ter fim.
Na vasta extensão coberta de neve, uma linha de pegadas se estendia pela terra branca e intocada, como pinceladas em uma tela.
“Huff, huff.”
Mal conseguia respirar o ar gelado. O frio brutal ameaçava congelar minha pele. Ainda assim, eu continuava a caminhar.
Ao longe, através da nevasca ofuscante, havia um leve lampejo de fogo.
“Encontrei.”
Quanto tempo eu estive procurando pela Chama de Gênese? Centenas de anos? Milhares? Ou talvez dezenas de milhares tenham passado num piscar de olhos. Já fazia tanto tempo que contar os anos parecia não fazer mais sentido.
Os incontáveis dias em que vasculhei cada canto do continente, arrastando esse meu corpo imortal, passaram pela minha mente.
“Haah…”
A primeira vez que percebi que não podia morrer foi durante um exercício prático no meu terceiro ano como Candidato a Herói. Um monstro saltou dos arbustos, suas mandíbulas cravando-se no meu pescoço com um estalo sinistro.
Enquanto minha cabeça decepada rolava pelo chão, pensei: “Bem, essa vida tá bem ferrada,” e fechei os olhos.
‘Mas aí eu voltei à vida, de alguma forma,’ eu lembrei.
Isso mesmo.
Eu estava vivo. Eu não tinha morrido.
Minha cabeça estava de volta ao lugar, e meu corpo, dilacerado pelas garras do monstro, estava inteiro de novo.
Foi aí que caiu a ficha: ‘Ah. Acho que morrer não é mais uma opção.’
‘Bem, eu acertei na mosca, considerando como as coisas acabaram.’
Classificado em 472º de 472 alunos. Formado em último lugar na minha turma na Academia de Heróis, virei um mercenário de segunda classe, perambulando pelos campos de batalha.
Mesmo quando monstros e demônios devastaram o continente. Mesmo quando a guerra estourou entre os heróis do Império e os heróis da República. Mesmo quando a Bruxa da Noite transformou metade do continente em um deserto congelado. Mesmo quando me tornei um dos Últimos Cinco Heróis, a última esperança da humanidade. Mesmo quando lutei ao lado dos meus companheiros na batalha final contra o Deus Demônio…
Eu sobrevivi.
Eu fui o único que sobreviveu.
Eu até sobrevivi ao Deus Demônio tirando a própria vida para lançar uma maldição que dizimou toda a humanidade.
Eu fui o único que restou. Preso aos restos esfarrapados dessa vida miserável, me segurando. Desesperadamente. Tenazmente.
Eu sobrevivi.
“Tudo termina… agora.”
Eu continuei em direção às chamas tremeluzentes no coração da nevasca.
A Chama da Gênese. Um fogo lendário, que se dizia ter queimado a Árvore da Criação—fonte do mundo e dos sete deuses.
Eu havia vagado pelo continente por um tempo que parecia uma eternidade, perseguindo esse artefato mítico, sem saber se ele realmente existia.
Quando dei mais um passo em direção às chamas dançantes…
Estrondo
O chão tremeu, e uma figura colossal irrompeu debaixo dos montes de neve. Um golem, seu corpo uma maravilha de maquinário intrincado. Um guardião antigo, uma relíquia de uma era esquecida, o tipo que eu já havia encontrado inúmeras vezes em minha busca pela chama mítica.
Whoosh! Smash!
(Smash = som de algo esmagando)
O braço do guardião me acertou, esmagando minha cabeça e pulverizando meu corpo.
Meus membros se torceram em ângulos impossíveis, órgãos se espalharam, pintando a neve imaculada de vermelho. Morte instantânea. Nem mesmo um ‘Herói’, abençoado pelos Sete Deuses com força sobre-humana, poderia sobreviver a um ferimento tão letal.
“Haah…”
As partes esmagadas e despedaçadas do meu corpo se dissolveram em cinzas cinzentas, espalhando-se pela vasta extensão branca. Então, uma luz emanou do estigma gravado acima do lado esquerdo do meu peito. Como se estivesse retrocedendo no tempo, minha forma mutilada se reconstruiu, retornando ao estado original.
Num piscar de olhos, eu havia ‘renascido’.
Saquei minha espada, um movimento praticado, enraizado profundamente no meu ser.
Um golpe rápido cortou a nevasca em fúria. Não houve um clarão cegante de aura, nem um rugido estrondoso. Em vez disso, como água fluindo, minha lâmina atravessou a armadura do guardião, partindo seu núcleo ao meio.
Choqualha, choqualha
O antigo protetor do domínio sagrado desmoronou em um fim anticlimático.
Clap, clap, clap!
Enquanto o guardião caía, uma salva de aplausos ecoou pelo ar. Eu me virei em direção ao som.
“Magnífico espadachim.”
“…Yuren.”
Um jovem de cabelos dourados como fios de ouro se aproximou. Ele tinha uma constituição esguia e traços andróginos delicados. Um sorriso gentil adornava seus lábios.
“Você costumava ter tanta dificuldade só para brandir uma espada.”
“Eu aprendi muito com você, afinal,” ri suavemente e continuei. “Vai saber, talvez eu esteja mais perto de dominar a Espada do Sol do que você agora.”
“Oh, isso é um desafio?”
“Talvez seja.” Dei de ombros enquanto provocava Yuren de brincadeira…
“Ahahaha! Derrubar aquele guardião gigantesco com um único golpe! Como esperado de você, mano!” Uma gargalhada estrondosa ecoou pelo campo de neve enquanto um homem gigante, vestindo um manto esfarrapado, caminhava em nossa direção.
Ele me deu um tapão nas costas com uma mão do tamanho de uma frigideira, um sorriso largo estampado no rosto.
“Você parece estar confiando só na sua espada ultimamente. Não esqueceu as artes marciais que eu te ensinei, né?”
“Não se preocupa, Verald. Eu lembro de tudo.”
Como eu poderia esquecer as artes marciais que ele pacientemente me ensinou, mesmo quando eu era um desastre descoordenado?
“Hmph. Você fala isso, mas não usou um único feitiço que eu te ensinei.”
Uma mulher pequena, quase sumindo atrás da figura imponente de Verald, estava em pé atrás dele. Ela segurava um grande cajado, e seu chapéu de aba larga fazia sombra sobre seu cabelo vermelho fogo.
“Desculpa, Sophia. Magia… não é muito o meu forte.”
“Eu sei, eu sei. Você e sua mana minúscula. Só tô te provocando.”
“Mas eu tenho estudado a teoria, viu. Acho que resolvi todas, menos uma, das ‘Três Enigmas do Grande Sábio’ de que você tanto falava.”
“Ah, por favor. Como se magia fosse só teoria.”
“……”
Engoli a resposta, lembrando como ela costumava pregar que a teoria perfeita era a essência da magia. Um sorriso leve surgiu nos meus lábios.
Yuren, Verald, Sophia. Meus companheiros. Nós enfrentamos incontáveis batalhas, ombro a ombro. Quando olhei para o rosto de cada um deles…
“…Você está bem?” Uma voz, quente como uma brisa de verão, derreteu o frio do deserto congelado nos meus ouvidos.
“Iris.”
Uma mulher de cabelos rosa suave, vestida com uma túnica branca de sacerdotisa. Seus olhos estavam escondidos por uma venda preta, mas suas feições delicadas—o contorno elegante do nariz, o arco suave dos lábios—exibiam uma beleza que tirava o fôlego.
Iris se aproximou, a testa franzida de preocupação. Ela pousou gentilmente a mão sobre meu peito, onde o Estigma estava marcado.
“Você não pode continuar se forçando assim.”
“Não importa. Eu só vou voltar, mesmo se morrer.”
“Isso não quer dizer que você não sente a dor!” Como sempre, a voz de Iris estava cheia de tristeza enquanto me repreendia.
Em vez de responder, a puxei para perto, minha mão encontrando a base de suas costas, e a beijei.
“Sinceramente! Você precisa sempre vai fugir do assunto assim?!” Iris me repreendeu, com as bochechas coradas.
Eu ri e me virei, olhando para as chamas que nos chamavam.
“Aquela é a Chama da Gênese, né?” Yuren perguntou, vindo ficar ao meu lado.
Eu assenti em silêncio. “Finalmente encontrei.”
“Demorou bastante.”
Parece que levou uma eternidade.
“Vamos, mano! Tá tão perto!”
“O que você tá esperando? Vamos!”
Incentivado pelos meus companheiros, acelerei o passo.
Alguns minutos depois, estávamos diante da chama suave, um farol solitário na vastidão branca infinita.
“…Menor do que eu imaginava.”
Não era maior que o tamanho do meu punho, uma chama pequena e trêmula. Mesmo assim, o poder que emanava dela, antigo e imensurável, deixava claro que era a lendária brasa.
“É estranho, né?” murmurei. “Essa chama pequena ter o poder de queimar o Estigma.”
Não houve resposta.
“O que você acha que vai acontecer quando o estigma for queimado?”
Nenhuma resposta.
“Espero que eu não volte à vida, né?”
Nenhuma resposta.
“Por que todo mundo ficou quieto de repente—”
Eu me virei para encarar meus companheiros, mas só encontrei o campo de neve vazio me encarando de volta. O vento uivante. O silêncio pesado. Um mundo de branco.
“……”
Certo. Eu sabia o tempo todo. Só escolhi ignorar.
Não havia mais ninguém neste mundo que pudesse me ouvir, muito menos responder.
“Haha…” um riso seco escapou dos meus lábios.
Me sentei pesadamente em uma pedra próxima e desatei a mochila que sempre carregava. Esses eram meus bens mais preciosos, as coisas a que me apeguei ao longo dos incontáveis anos, através de uma eternidade que ameaçava corroer até minha alma.
“Yuren.” Gentilmente, enfiei a espada desgastada no chão frio, sua superfície outrora brilhante agora apagada pelo tempo. “Você foi o maior herói e o melhor espadachim que eu já conheci.”
Por causa da coragem que você me ensinou… eu estou aqui.
“Verald.” O manto surrado, seu tecido fino e gasto, caiu das minhas mãos, assentando suavemente na neve. “No começo, achei que você era maluco. Um maníaco do departamento de magia que preferia socar do que lançar um feitiço. Mas você estava certo. Para chegar ao auge das artes marciais, é preciso também dominar a magia.”
Por causa da tenacidade que você me ensinou… eu estou aqui.
“Sophia.” Com o coração pesado, abaixei o cajado quebrado no chão, a madeira fria e áspera sob meus dedos. “Sinto muito por não ter conseguido usar a magia que você tanto se esforçou para me ensinar.”
Por causa da sabedoria que você me ensinou… eu estou aqui.
“E…”
Restava um último item na minha mochila. Minha mão tremia enquanto eu pegava a venda preta.
“Iris.”
Lembro da suavidade dos seus lábios. Do calor do seu toque, uma memória querida.
“Obrigado por amar um cara como eu.”
Por causa do amor que você me ensinou… eu estou aqui.
“Haah…” Dei um suspiro trêmulo.
Então, peguei a chama trêmula, segurando-a com as duas mãos. Lentamente, levei o fogo até o Estigma marcado acima do meu coração.
“……”
Pensei neles. As pessoas preciosas que se tornaram minha família, mesmo eu nunca tendo conhecido o rosto dos meus pais.
Meu bravo companheiro.
Meu irmão leal.
Meu sábio mentor.
E… minha parceira amorosa.
“…Ah.”
As emoções que enterrei fundo no meu coração surgiram como uma torrente incontrolável.
“Ah… ugh…”
Tanta coisa que eu queria dizer, mas nenhuma palavra saía. Nesse mundo desolado e silencioso, só restava o som da minha dor, perdida no uivo do vento e na neve girando ao redor.
Woosh!
A Chama da Gênese envolveu o Estigma, espalhando um calor abrasador pelo meu corpo.
E então…
“Dale! Dale Han!” Um rugido furioso cortou o ar.
‘Que diabos—? Quem tá chamando meu nome?’
“Como você ousa dormir na minha aula? Você tem coragem, hein, garoto!”
Whoosh!
Vi uma mão, grande como uma frigideira, vindo na minha direção. Meu corpo se mexeu antes que minha mente acompanhasse.
Fwip!
Agarrei o pulso do homem e o puxei para perto de mim, enquanto meu outro punho acertava seu plexo solar. No momento do impacto, explodi a mana que havia canalizado na minha mão.
(Nota/tl: O plexo solar é uma rede complexa de nervos localizada na região do abdômen, logo abaixo do esterno (osso do peito) e atrás do estômago.)
«Impacto de Força».
As artes marciais de Verald fluíram por mim, o instinto assumindo o controle.
Crash! Crack! Snap!
O homem gritou, sendo arremessado para trás. Ele se chocou contra a mesa, com pedaços de madeira se espalhando ao redor.
“……”
“……”
O silêncio caiu.
Franzi a testa, olhando ao redor para os rostos atônitos dos alunos que me encaravam com os olhos arregalados.
“…Hã?”
Onde diabos eu estava?
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